sábado, abril 10, 2010

Ao seu lado

Abri uma garrafa de Dom José Ruby da Real Companhia Velha, um excelente exemplar de Vinho do Porto, excelente companhia para noites em que a solidão bate à porta e distraídos a deixamos entrar e se acomodar na velha poltrona de leitura.

Gosto quando ela está sentada diante de mim quando estou só reconheço se por momentos me esqueço que existo entre outros que são como eu sós, salvo que estão alheados desde o começo me encarando com seus olhos melancólicos. Ela é boa companhia, não sorri, não questiona, não bebe meu vinho. Pega uma antiga edição portuguesa de um poeta que gosto e lê as linhas que lhe são familiares por falar com intimidade de um assunto que conhece tão bem. Distraio-me olhando-a de frente. Enquanto lê, timidamente, uma passagem. Ela lê, levanta o olhar sobre o livro e encara-me como se fosse dizer qualquer tolice. Mas, calmamente, fecha o livro sobre o seu peito e se sinto quanto estou verdadeiramente só, sinto-me livre mas triste. Vou livre para onde vou, mas onde vou nada existe respira fundo e olha fundo nos meus olhos cor de noite.

Tem sido assim todas as noites desde que Marina foi embora. Marina, se ela soubesse! Se tivesse sede ou fome eu teria como que saciar-lhe. Se lhe apetecesse embriagar eu seria seu vinho e então, ela se lembraria de mim como nas manhãs em que o sol acorda junto ao galo que teima em cantar tão cedo. Eu seria a chuva caindo em sua vidraça. Seria sua lembrança mais doce, também a mais constante, seria seu céu por que eu a amo. No entanto, Marina partiu e me deixou a certeza de não mais voltar.

Dessa vez é certo que Marina não volta. Creio. Quando saiu senti o peso do adeus ao bater a porta. Desde então só restou o silêncio. Estive presente quando estava feliz, estive presente quando esteve triste e não pude conter seu ímpeto em me deixar sozinho. Ainda sinto seu cheiro pelos cantos dessa casa, pelos corredores, quartos e nos objetos empoeirados sobre móveis antigos. Nas poucas roupas que ainda restam, no perfume que se dilui lentamente entre os livros que não levou. Sinto falta de seu cheiro-de-flor-de-manhãzinha.

Não necessito desses tons azuis pregados nos azulejos mais altos.

Preciso apenas me embriagar.

A solidão me encara em meus devaneios e, por vezes, me encanta com a melancolia impressa em seus olhos. Em sua pele cinza, nos tons pretos tigidos nos detalhes de seu longo vestido de festas. Ela se embriaga ao meu lado.

Estava disposto a esquecer o tempo, o passado e a falta que Marina me faz. Estava disposto ao isolamento e a não ter que dividir meus pensamentos com o resto do mundo, além da solidão que me acompanha. Estava quase voltando a ser o que costumava ser, quando o cara do apartamento ao lado resolveu ouvir músicas românticas a essa hora da noite. Foi então que pude perceber que o amor é assim, uma canção do Roberto que toca num rádio, depois acaba, e tocam uma velha canção do Chico para termos aquela nostálgica sensação de que ainda é possível ser feliz para só então depois tocarem uma canção triste interpretada pela Dolores Duran falando de amor.

E o homem do apartamento ao lado parece ter encontrado nas músicas que falam de amor os mesmos motivos que eu encontrei nessa garrafa de vinho que não demora acabar. Isso, por alguma razão, me faz bem. Quase sorrio e meu rosto já não é o mesmo. A solidão se levanta da minha poltrona, deixa em meu colo o exemplar português do Alberto Caieiro e caminha em direção ao apartamento ao lado creio contudo que a vida devidamente entendida é toda assim, toda assim. Por isso passo por mim como por coisa esquecida Ela não suporta o sorriso, mesmo que solitário, mesmo que por um instante, de alguém que por alguma razão encontrou um motivo qualquer para não estar mais triste.

Poema - Quando estou só reconheço - Alberto Caeiro

3 comentários:

  1. A solidão gosta desses momentos tristes, então chega, sentindo-se em casa e se apodera de nós e das nossas faltas. Ela quer ser companhia, quando a companhia preferida se vai. E ao contrário das companhias, que em algum momento, sempre se vão, ela quer ficar, sempre, permanente e imutável...

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  2. a solidão é boa companheira dos artistas. Foi boa companheira para sua crônica de interioridades.

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  3. "Eu seria a chuva caindo em sua vidraça."
    Tem cada fras....

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