domingo, abril 19, 2009

Conto - Por um segundo

Acordou, e por um segundo não sabia dizer onde estava. Permaneceu deitado e não abriu os olhos. Quis saber onde estava, mas não se esforçou para lembrar. O quarto não lhe pertencia. Constatou. Faltava-lhe a esposa e um choro de bebê no quarto ao lado. Não havia nada, apenas o silêncio de uma noite que se esvaia. Abriu os olhos, na esperança de uma nova constatação. Era um quarto de hotel, e hotel é hotel. Uma cama, um criado, um armário, frigobar, banheiro, cortinas, o ar desligado. Não saberia dizer em que cidade estava, em qual país foi parar.
Levantou-se devagar, não havia pressa, nem motivos para pressa. Queria saber onde estava sem ter que abrir a agenda aquela hora, não queria a confirmação de datas, telefonemas, almoços. Caminhou descalço até a janela, abriu as cortinas, abriu a vidraça. Queria a confirmação do que seus olhos poderiam lhe dizer. A confirmação dos fatos. Abriu a janela e pôde ver uma leve chuva se precipitando sobre a cidade que tranqüila dormia sem perturbações maiores. Sentia frio, mas este não o incomodava. A chuva justificava o frio e o silêncio.
A noite era toda silêncio e chuva. Dali, do sétimo andar, a cidade era maior do que imaginara, mas não havia sinal que lhe identificasse. Placas, monumentos, sons, pessoas conversando nas esquinas. Nada. A cidade estava apagada. Dormia. Seus neons se misturavam à névoa e criava um tom onírico como se ele ainda não tivesse acordado. Sabia que era uma capital, pois desde que se lançou nessa nova empreitada, seus contatos se resumiam a capitais apenas. Mas pela visão à sua frente, poderia estar em São Paulo, Lima ou Bogotá.
Parou para observar o tempo e o tempo parecia não se mover. A chuva caía e deixava tudo a sua frente com a atmosfera de um filme neonoir. A noite não pesava tanto e a neblina suavizava o rigor das construções no horizonte. – Noite perfeita para um assassinato. Pensou. Não identificava nos letreiros eletrônicos sinais que lhe diriam se estava em La Paz, Buenos Aires ou Porto Alegre. Não saberia dizer que horas eram, onde estava, quais compromissos teria pela manhã.

Por um segundo sorriu e se sentiu bem por apenas estar ali. Sentiu-se bem por ter acordado no meio da noite. Bem porque chovia e estava frio. Bem por estar num hotel qualquer, por estar longe de todas as pessoas, numa cidade que não saberia dizer o nome. Sorriu por estar bem. Fechou a janela, as cortinas, voltou para a cama. Aninhou-se entre o edredom, o lençol, os travesseiros. Sabia que acordaria em Santiago ou Assunção e era só. Por um segundo esqueceria os almoços, as agendas, os contratos. Ficaria ali inteiro, deitado, pronto para dormir quando o sono viesse. Pronto para acordar quando o corpo quisesse. Feliz apenas por existir, feliz por ser apenas.

4 comentários:

  1. Emocionou-me...
    ...como fico emocionada com sua coragem, sua vontade de realizar coisas, como me emociona a maneira que acreditas em teus sonhos e fazes, um a um ir virando realidade!!!
    Descubri que te admiro.
    meu beijo

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  2. Feliz apenas por "ser"...
    Renatto, você chega há um lugar incrível da compreensão humana com esse conto. Porque o tempo todo buscamos motivos, pessoas, realizações para justificar nossa felicidade e deixamos de usufruir dela por si mesma, pelo simples motivo dela existir em nós pelo que somos, e não por onde estamos, com quem ou fazendo o que. Esse texto desdobra para mim, milhões de reflexões, é muito mais do que esses 5 parágrafos, essas 60 linhas, é muito mais do que um olhar por uma janela indecifrável! Abraços.

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  3. Depois dessa, só lhe digo três sílabas :

    Cri ...cri..cri...


    *Cri cri cri = Sem palavras.
    Boquiaberta,estagnada,pronta para virar a outra maçã do meu rosto.

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  4. Como seria bom se isso acontece ao menos uma vez no ano com cada pessoa... nao se preocupar com o que devera fazer, ou onde esta... Somente viver esse momento, unico. Aplausos!
    Sucesso sempre! Gabyzinha do Fulo

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