segunda-feira, maio 31, 2010

Crônica-de-uma-separação



Amor é quando paramos para prestar atenção nessas canções que tocam tão docemente nas novelas, quando o mocinho sai batendo a porta e ela, a mocinha, quebra uma jarra com flores, se encosta na parede e chora copiosamente, e não estou falando em bossa nova ou samba-canção, falo de dor de cotovelo mesmo. Joana, Fagner, Joyce. Amor é dessas canções que deveriam vir acompanhadas de uma corda de forca ou uma lâmina-para-cortar-os-pulsos. Pronto, o amor estaria resolvido.
Seria tão mais fácil.
A gente vai encaixotando todas as coisas que foram quebradas – jarras, vidraças, móveis e pensando em para onde ir, o que fazer e se será possível recomeçar. Neste caso é pegar aquilo que restou. Nenhum Neruda, nem a imagem de um santo devoto, nenhuma reprodução de Dalí para disputar. Enquanto recolhia os cacos dos meus últimos 20 anos, pensava-no-que-me-sobraria.
De Roberto não restou nem o álbum de 72.
Se não há amor, por que o choro? Ela está no quarto destruindo o pouco do que guarda nossos cheiros misturados. Lençóis, roupas, espelhos, frascos de perfumes vulgares, as minhas gravatas e seus sapatos mais caros. Por que evitar o olhar, um abraço de adeus? Por que o adeus? Ela veio falar comigo. Eu olhava distraído os pedaços de fotos, os cacos dos discos, todos os fragmentos de um passado recente. Lacônica ela me observa. Olhos ainda vermelhos, cabelos caídos sobre os ombros, roupas amarrotadas. Descalça recostada entre o corredor e a sala de estar. Eu distraído, ignorava-a olhando os restos, feito um quebra-cabeça-de-muitas-peças-pronto-a-ser-montado.
Não por um, mas por dois.
A viagem à Ilhabela, a pior de nossas vidas, mesmo assim, a única que não esquecíamos nunca. Muita chuva, o congestionamento na balsa, os dois resfriados. O show da Gal Costa, nossa primeira briga por ciúmes e também nossa noite mais intensa sob um céu de infinitas estrelas. Ela veio, juntando-partes-que-eu-não-havia-encontrado entre o que sobrou da televisão e os retalhos das cortinas e sofá, talvez estes pedaços não me fossem tão importantes naquele momento. Quando as imagens surgiam e ressurgiam, nossas faces duras tornavam-se de uma leveza tão delicada que qualquer um poderia jurar que estávamos a sorrir. E as partes das histórias iam se juntando. Fotografias, fragmentos dos discos do Fracis Hime, peças desencontradas de porta-retratos, lembranças das Cataratas do Iguaçu, páginas dos livros de Borges, Lispector, Sabino, revistas de decoração misturadas a tudo-que-foi-quebrado-na-última-briga.
Ela, como qualquer mulher, não dá margens para pensarmos que estamos chegando ao fim. Nós, os homens negamos que percebemos. Precisamos que elas nos digam que já é era hora da partida. De se mudar para o sofá. Voltar para a casa dos pais. Alugar um quarto no centro da cidade, perto do trabalho, em cima de um boteco frequentado por putas.
Mas conosco foi diferente. Juntávamos pedaços desencontrados de nossa própria história e tentávamos reconstruir com outras partes de outros momentos. A viagem a Coromandel, com pedaços da Ilha Porchat, o casamento da Anabele, do qual fomos padrinhos e um cartão postal que nos enviamos de Buenos Aires. Essas histórias pareciam fazer sentido agora que não havia mais sentido algum e aos poucos ríamos. Ríamos como os adolescentes que fomos quando nos conhecemos. Fazíamos pilhéria com nossos próprios restos. Ríamos da nossa meninice, da brincadeira tola que virou nosso-passado-remendado-diante-de-nós.
Um casal quando ri junto ainda tem muita vida pela frente.
Preferimos manter o trato. Juntamos todos os cacos, todos os restos. Encaixotamos e levamos para fora. O lixo será recolhido em pouco tempo. Saímos de casa sem bagagens, sem detalhes, sem nada que nos-mantivesse-preso-um-ao-outro, tudo o mais que resta será diluído lentamente pelo tempo. Por outras histórias. Novos amores. Ela partiu, linda como uma canção do Chico Buarque. Eu parti, assoviando as notas dessa melodia.


8 comentários:

  1. Delicado, sutil, rico em detalhes... Suas palavras são de uma sutileza ímpar, só quem viveu um amor assim pode descrever certas passagens. Seu texto consegue nos fazer "viajar". O grande Nelson Rodrigues já dizia: "Qualquer um tem seus íntimos pântanos."
    Sou seu fã.

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  2. Acho que o choro é justamente pela falta de amor, que a gente viu, depois não vê.





    E se o tempo não puder diluir direito?

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  3. E o amor se aprende, aos poucos, lentamente, se partindo e se quebrando. Depois colando com carinho. E, então, um dia, se descobre inteiro e pronto para se amar completamente, de forma redonda, sem ponta nem lasca. Adorei o texto, a leveza, a delicadeza para se descrever a vida concreta.

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  4. Recolher os cacos de uma separação é coisa dolorosa. Mas você faz isso necessário, porque sem essa possibilidade estaríamos privados de uma história tão bem contada.
    Lindo texto!
    Delicioso e delicado.
    Beijos

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  5. Adorei o texto... O sentimento do amor tem mesmo que ser muito maior que a acomodação do estar junto. Tenho pensado muito nisso e o texto me pegou ainda mais por isso... Ele é aberto, trás várias leituras importantes sobre a relação a dois, e, é capaz de nos fazer refletir sobre muito que é importante...
    Bjim

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  6. Minha cara essa crônica: Passional!!! rsrs...
    Gosto muito!!!!

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  7. Adoooro crônicas!
    Essa ficou perfeita *-*
    Seguindo aqui..
    beeijos

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