Damiana desperta ao toque suave da mão da enfermeira em seu ombro. Assim tem sido em todos os dias nesses últimos 13 anos de sua vida. Ela se levanta e aos olhos atentos da enfermeira ajeita o lençol, sozinha, ainda é capaz desse pequeno gesto de independência. Os cobertores dobrados ela os coloca ao pé da cama, o travesseiro na cabeceira. A enfermeira abre as cortinas, as janelas e deixa o dia invadir o pequeno quarto habitado pelas oito mulheres. Damiana tira a camisola branca-puro-algodão e veste-se de verde. Essa é a cor usada para os dias de domingo, dia de receber as visitas. Acompanhada das outras mulheres, calmamente, se veste, calça sua chinela de tecido macio e vai, como num cortejo, para o refeitório. Está anciosa pela visita dessa tarde.
Pelo corredor ouve-se apenas os sons abafados dos passos em direção ao refeitório. As mulheres não conversam. Os assuntos são sempre os mesmos ali dentro, então não vale à pena repetí-los. Damiana prefere assim. Não conversa, não olha para as outras. Seus pensamentos fixos a levam às visitas de logo mais, depois do café-da-manhã, quando seu rosto petrificado se abrirá num grande sorriso de boas-vindas. Virão as amigas do tempo do colegial que sempre lhe trazem tardes tão agradáveis e tão belas recordações. Ou os filhos com seus filhos que lhe trazem tantas alegrias. O esposo, os pais, avós, os amigos daqueles tempos tão remotos que, ainda menina, permitia que corresse de pés-no-chão ou subisse em árvores-tão-altas. São tardes memoráveis e Damiana não quer dividir com as outras mulheres ali sentadas à sua volta na mesa tão dispersas.
Ainda em jejum ingere o primeiro comprimido do dia. Se habituou a tomá-los pelos horários fixos. Antes do café da manhã tomava o que deixará desperta. Tomado o remédio Damiana come calmamente seis ou sete biscoitos de maisena, uma caneca generosa de café-com-leite-bem-quentinho adoçado com rapadura, como imagina, e uma maçã descascada. É assim que começa feliz seu dia de domingo com tanta alegria vindoura. Começa pela frugalidade da primeira refeição. Ela sabe esperar. Depois de comer se encaminha rapidamente para seu quarto, um quarto que não é só seu, é de tantas outras como ela que não se explica bem os motivos de estarem ali.
Sentada em sua escrivaninha, de frente ao espelho, onde acredita se vê, toma o segundo comprimido para controlar a ansiedade enquanto se enfeita. Solta os cabelos e pentea-os delicadamente, seus cabelos são longos e sem vida. Ajeita-os como se nada pudesse estar fora do seu devido lugar. A enfermeira ajuda a prendê-los no alto da cabeça com uma fita de cetim verde, um verde próximo à cor do vestido. Calmamente passa o blush para aquecer as maçãs do rosto, a sombra clara nos olhos abstratos, o batom para colorir o lábios tão pálidos. Pinta-se discretamente para as visitas. Após as cores em seu rosto toma o remédio que a ajudará em sua espera.
Já é possível ouvir as vozes das visitas chegando. Acredita ser domingo. Não tarda e estarão todas lá fora à sua espera. Olhou mais uma vez no espelho. Os olhos cansados, a pele enrugada, o cinza-branco dos cabelos não a incomodavam. Se enfeitava por não ter nada de seu para um agrado às visitas. Sentia-se bonita com as cores que cobriam a pele de seu rosto e seus cabelos.
Damiana já ouve os passos das visitas. Precisa se apressar. Ela abandona o quarto e segue para a varanda. Não frequenta as aulas de pintura, nem as aulas de modelar. Aos domingos ela se senta na varanda para esperar tão doce companhia. Atravessa os corredores ávida e com os olhos vívidos. Não repara nas outras mulheres. Estas observam-na desesperançosas. Damiana escapa da enfermeira, mas esta sabe de sua alegria em esperar. Ela se senta na cadeira da varanda. Só ela tem permissão de sentar-se ali aos domingos, como ela acredita. Pousa sobre as pernas as mãos nervosas e ali fica até que o portão se abra.
Ela se senta na cadeira da varanda e espera que o portão se abra e as visitas entrem. Espera ver os filhos, as amigas, toda a família reunida como nas festas natalinas ou nos casamentos. Por vezes visita o jardim e apanha algumas flores. Gosta de azaleias brancas. Colhe algumas e espera que todos cheguem com novidades. Relatando grandes acontecimentos. Contando histórias que a deixarão feliz até o próximo domingo. Ela espera. Ela sabe que domingo é dia de visitas. Ela sabe que eles chegarão. Ela sabe. Só não sabe que hoje é terça-feira. Este detalhe a enfermeira não disse e os remédios certificam sua crença. Em sua doce loucura todos os dias são domingos. Todo dia é dia de espera. Mesmo para as visitas que nunca chegam.
Fui embalado na espera desta senhora, mas como não era dia de domingo fiquei apenas esperando. Angustiante, mas doce! Há um bom tempo não apareço por aqui. Voltei num conto abrasador.
ResponderExcluirAbraços!
Renatto nunca me decepciona.
ResponderExcluirSempre surpreendente! É muito bom entrar no universo de suas histórias e dividir tantas outras com vc... Sei que espero muitas coisas que talvez não virão, mas espero...
ResponderExcluirQue doce espera...lendo esse texto me lembro da peça do Naum: "No natal a gente vem de buscar"...onde a gente sente, como no seu texto,no correr das linhas que é um espera seca, sem esperanças, mesmo que ela vista verde todos os dias...
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