quinta-feira, setembro 10, 2009

De um azul que não se acredita

Não entro no mar. Levanto-me todas as manhãs e vejo o mar. Logo cedo há dezenas de pessoas caminhando na areia ou na calçada. O sol baixo, o vento brando, o mar calmo estimula estas pessoas. Às vezes tenho vontade de entrar em suas águas. Sentir o sal no corpo, o sol na pele, mas limito-me a acender um cigarro.
Ao acordar a primeira coisa que vejo é o mar, o mar e suas ondas e ao longe as jangadas passando perto de grandes cargueiros. Perto é o que me parece, o horizonte me confunde a essa hora. Então imagino que um dia eu possa me juntar aos pescadores e acompanha-los numa pescaria, penso isso enquanto fumo, mas limito-me a esperar ferver a água do café.
Todas as manhãs enquanto tomo meu café, vejo passar correndo Seu Ulisses, logo atrás vem o Sofista, seu cachorro mal humorado. Ele me convida a correr, mas limito-me a sorrir, contra a vontade, e acenar com a caneca, pois a outra mão está no bolso do roupão e tenho preguiça de tirá-la só para cumprimentá-lo.
Sei que o Seu Ulisses entra no mar, ele e o Sofista, então às vezes penso: - “como deve ser bom entrar no mar”. Mas limito-me a sentar na varanda do meu apartamento e olhar o vai e vem das ondas e dos banhistas. Esta semana um rapaz foi pego por um tubarão, só a cabeça dele foi encontrada dois dias depois aqui em frente. Então pensei: - “nem tão longe ele estava, e para um tubarão a praia deve ser um prato cheio”. Por essas e outras nunca entro no mar.
Daqui de cima o mar é de um azul que não se acredita, no inverno chego a confundi-lo com o céu e chego a querer entrar em suas águas, mas aí me vem a imagem do tubarão e de como o sol queima a pele e de como me incomoda a areia, então fumo um cigarro e me distraio criando histórias para cada navio que parte no horizonte.
Quando acordo de madrugada, pouco vejo do mar. A orla não me interessa, não há pessoas e as ondas me dão náuseas, mas se é lua cheia, vejo as pequenas ondas que se formam mar adentro. Então acendo um cigarro, mas não tomo café. Café a esta hora me tira o sono e eu gosto de acordar cedo e ver os banhistas pela manhã e ver o Seu Ulisses correndo logo cedo. Ver um homem de 60 anos correr logo pela manhã me dá ânimo para pensar em um dia, talvez, correr também, e quem sabe até entrar no mar.
Às vezes, vejo Seu Ulisses voltando de sua corrida. Ele e o Sofista, seu cachorro mal encarado. Então aceno com a caneca de café como a dizer: - “sigam sem mim!”. E ele se vai, ele e o Sofista. Às vezes, penso na possibilidade do Sofista ser comido pelo mesmo tubarão que comeu o surfista, então imagino que sem o Sofista o Seu Ulisses quereria que eu o acompanhasse, aí não penso mais, não suportaria a idéia de ter que substituir um cachorro. Embora queira muito, um dia, entrar no mar.

11 comentários:

  1. Sabe querido,
    Penso que essas aguas te fariam bem.Alí dentro delas conseguimos uma mistura de renovação e delírio onde os medos se vão para o ralo.

    [sim, lá no fundo existe um grande ralo]

    onde salgamos e cicatrizamos nossas feridas,e nos fazemos renovados e de alma leve...
    imortalizados pelo sal do mar,
    pelo sal da terra.

    Lindo texto!

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  2. Gosto muitos das ideias, do Renatto, são instigantes e as vezes não são completas, deixa um gostinho de quero mais. Penso que literatura tem que ser assim, não tem como despertar o gosto em pela leitura se não é instigante, cedutor... Fora o "Gostinho de quero mais". Parabéns Renatto pela iniciativa.

    Leandro Dantas

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  3. Renatto que lindeza esse texto, que metáfora maravilhosa com vida. Todo o tempo eu lia e pensava nas pessoas que vêem sua vida passar, vêem os outros vivendo e vão deixando para depois tudo, têm preguiça de se mover e por isso vão repetindo seus vazios, adaptados à um cotidiano cômodo, não feliz, mas cômodo e que não exige grande esforço. A contradição é que viver é querer agir, a vida chama, grita, mesmo que seja nos atos dos outros, nas vontades e nessa hora, até substituir um cachorro é coisa de grande valia para se desejar... beijos.

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  4. Bacana seu blog professor, gostei dos textos, mas gostei ainda mais do ângulo das suas fotos...
    Bj, bom fds

    Alline

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  5. Li seu texto, enfadonho na medida certa....técnica interessante....com o distanciamento percebo seu crescimento naquilo que se dedica a fazer....que bom...fico feliz por isso.....

    Andreia Braga

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  6. Que texto lindo. Impossível ler e não se identificar. Poético e cruel. No ponto. Adoro os seus escritos. (Estou precisando entrar no mar!)

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  7. Inércia às vezes é uma coisa triste. Impede o mergulho, literalmente no caso dessa crônica (devo chamar assim? Não sou boa em classificações).
    O nome do cachorro é sugestivo, mas não alcancei bem a relação dele com o texto, se há uma relação.

    Do fim do ano passado pra cá mar é uma palavra que de certo modo bole comigo, me lembra que gostaria de voltar lá logo, mas enfim, estou divagando.

    Escreva mais! Beijo.

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  8. acho que todo mundo é um pouco assim..
    dooido pra mergulhar de cabeça nesse mar mas o que falta é a danada da coragem.. poucas pessoas tem a coragem de ousar. (:
    adorei o texto.. abraços!

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  9. Sensívelmente apurado você fala dom mundo de fora e do mundo de dentro.As onda que movem o mar e as onda de pensamento que levam a vida da gente num piscar de olhos. Parabéns por essa escrita que traduz a respiração de um sentimento em uma manhã, em um gesto repetidos por toda a vida.
    Abraço forte
    Cristiene Carvalho

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  10. Fiquei pensando o que eu poderia comentar. Comecei então à ler aquilo que outras pessoas te disseram, pra ver se vinha inspiração,palavras que me fizessem parecer um tanto intelectual. Mas sabe? Não há necessecidade de tentar mostrar esse meu lado, que talvéz eu nem tenha...
    Parece besteira, e talvéz um "encolhimento" de mim mesma, mas é só pra explicar as palavras simples de um comentário.

    Adorei o texto. Eu consegui me sentir a visinha daquele fumante, que todos os dias vê aqule homem que fica olhando da varanda do apartamento um Senhor e seu cachorro, o mar e o medo. Me lembrei das das coisas que tenho medo... Mas não sei se ainda vou ter coragem de encará-los.Ainda é mais cômodo olhar as coisas de longe.

    Beijo, escreva mais crônicas!

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  11. Oba! rsrs
    Estava esperando mais textos!
    Sempre quando fico on line logo penso em vistar seu blog... é viciante ler o que voce escreve, me dar vontade de escrever tambem, mas limito-me a ler suas historias... Esse medo de se jogar no mar, dos tubaroes que podemos encontrar... voce melhor que ninguem traduz perfeitamente os desejos e medos dos seres humanos... Parabens! Adorei!Valeu a pena ter esperado! beijO da GabY

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